quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

menino do rio

meus lábios serraram-se. era noite. no fundo o barulho incessante de ondas batendo na orla do mar, enquanto pelo caminho corpos brilhantes se tocavam, sorrisos se encontravam meio ao sentimento opaco de alegria e enfasto. Sentamo-nos. Éramos três. Nosso sexo, frágil, ali destinado ao fundo de ônibus em alta combustão. Logo eles então surgiram e eram quase três também, sendo que um deles era tão miúdo que não poderia ser considerado ainda um inteiro. Claro, assim, não em termos de lei. Ainda era janeiro de um ano dourado na cidade maravilhosa e vínhamos de cansaço e areia e glitter meio a um carnaval antecipado. Na nossa frente, eles. Meus lábios estavam mudos, não apenas pelo medo inicial, mas pela dor que nos aflingi quando corpos estranhos serram nossos lábios. Muda estive todo o percurso, da orla ao morro. Da orla ao início do morro. De primeiro, o estranhamento, vozes altas, destrato, modos de viver tão distintos que nos fazem negar que o outro seja um alguém tal qual nós somos. Eles sorriam como nós, bebiam como nós e divertiam-se desbloqueando um celular roubado que poderia ser nosso. Tantas foram as perguntas em minha cabeça cheia de boca muda. Ali, visão privilegiada, pude contemplar a existência desses sujeitos tão próximos e tão distantes da minha realidade. Pensei que poderia ser eu. Que poderiam ser meus amigos de escola, já outrora tão rejeitados pelo mundo. Eu, outrora, rejeitada fui. Pensei na infância perdida e na falta de desejo do prazer mais bobo, mais inocente. Da graça que não há enquanto todos os demais divertem-se. Era quase carnaval e a folia para meus companheiros de busão era vender. Fazer dinheiro, lucrar. Não riram quando os passageiros da zona sul entraram ano ônibus fazendo folia e cantando músicas de acampamento. Não cantaram com eles ou se alegraram. Não comentaram de uma vez em que... ou esboçaram quaisquer desejos de fazer pertença aquele cenário. Não, provavelmente, é a primeira palavra que aprenderam na vida. Junto a todos nós, essas quatro almas nada mais eram do que aqueles que conseguem vender aquilo que tanto buscamos para alimentar a alegria. Eles nos vendem as drogas e o álcool para que nos dias seguintes acordemos com a dor na consciência por haver perdido algo além da carteira ou do celular. Eles, sem sensibilidade alguma, posto que esta palavra desfigura de seus vocabulários ordinários, vendem alegria, mas, no fundo, o que compramos é a triste mão na consciência. Compramos a dor da morte nos subúrbios. A dor do morro tornando-se verbo.

50 minutos de viagem não foram suficientes para minha boca muda. No outro dia, assustei um garoto enquanto ele fuçava o lixo de uma das avenidas mais boêmias do rio de janeiro. Ofereci-lhe comida chique, risoto e contrafilé. Ele virou-se para mim com os olhos mais verdes que já vi em um rosto tão imundo. Não acreditou naquilo. Deixei com ele e fui embora. Tal qual, também desacreditada. Aqueles olhos verdes que não me saem da memória. Ele não lembra mais de mim, a menina que o atrapalhou e ofereceu um resto de comida. E eu, daqui, lembro tanto dele que chego a lacrimejar. Poderia ser eu, penso. Poderia ser qualquer um dos meus.



[criseida]