terça-feira, 23 de abril de 2024

Inalar

 Curioso como funcionam nossas memórias. Às vezes ressurge, não sabemos bem de onde, uma imagem, uma voz, um cheiro, uma sensação...

... dia desses precisei fazer inalação no meu pequeno. Foi instantâneo: colocá-lo na posição, ajeitar a máscara em sua face, acionar o motor e tchum! A pequena Criseida foi enviada para algum longínquo dia do início dos anos 90, quando ainda morávamos em SP e minha mãe me carregava em seu colo, no postinho da Cohab, enquanto eu fazia inalação. Os olhos da minha mãe, a máscara, a luz da sala de medicação, o estranhamento com um "arzinho" que saia de dentro da parede (!!). Tudo isso voltou num zás-trás em minha cabeça, como se houvesse acontecido antes.

Ser mãe também quer dizer recuperar o sentido de ser filha, penso eu. O que foi ser filha, o que se sentiu sendo apenas filha de alguém.

Ao mesmo tempo em que esse pensamento me consola, também me apavora pensar que, por causa de tais relações, eu devo pensar o que será que o meu filho sentirá por ser meu filho. No fim do dia, como fecharemos essa conta?

Tá longe de acontecer. Tá distante o dia em que ele terá consciência e pensará sobre nossa relação, avaliando-a. Maternar é também saber que cada dia é um dia e, assim, a ansiedade é aplacada pelas demandas.

Fora maternar, os dias foram densos. Maternar me tira dessa densidão, do "deep", coloca um tanto de concreto e urgente em minhas ações e em minha cabeça. Até o "viajar" fica mais restrito por causa das demandas urgentes de um bebê. E do cansaço de cuidar de um bebê. Então, os outros temas atormentam, mas não reinam. Não cabe, não dá, não há espaço - definitivamente, não há.

Mas doem. Como uma punhalada de passado, de tristeza, dói. Ver que é possível ser escanteada assim, sem mais nem menos, no contexto de puerpera, dói. Algumas despedidas doem mais do que outras; essa, em especial, é uma delas, porque quem foi não é uma pessoa que eu conheci na vida e vá-lá; não. Quem vai é alguém que, por ver nascer, pensei que teria laços mais bonitos, mais profundos.

E tudo na vida é construção.

Em algum lugar, algum dia, com alguma dificuldade respiratória, minha mãe construiu um laço inalante comigo. Seus olhos nos meus. Não sabia julgar preocupação ou desespero, apenas sei que ela esteve ali. Hoje, desse meu lugar, com pedaços faltantes, alguns medos e uma ligeira dificuldade ortopédica (risos nervosos), eu faço presença com meu filho, por meu filho.

Oxalá ele fique. Oxalá dê resultado esse respirar novos ares.


[criseida]