segunda-feira, 10 de junho de 2019

2 mensagens para um retorno.

Sim, de novo, outra vez, novamente, eis-me aqui. Pintada, vestida, desnuda, bronzeada de um sol que insiste em não deixar meu corpo se descamar neste quase inverno. E já faz 10 graus ou menos nas nossas madrugadas. Pessoas já devem estar morrendo de frio pelas ruas. Mas meu corpo insiste em exibir um tônus dourado, atrevido, provocando as pessoas que não estiveram no calor da Bahia há pouco tempo. (dizem até que quem foi agora não voltará tão bronzeado quanto eu. Sorte? Sim. De quem? ...).
Meu corpo está bronzeado e despido na tentativa de uma vez mais voltar às páginas favoritas da minha vida. Tão favoritas que eu finjo esquecê-las para voltar mais tarde e relembrar do quanto é bom estar entre eu e eu. De entregar-me ao processo de ser-me-sendo eterno que nenhum sol, nenhuma Bahia e nenhum tempo são capazes de extinguir.
Líquida, feito água, mergulho nas palavras que há muito insistem em sair de mim, mas eu não deixo. Aprendi que deixar de dizer, deixar de ser-se, é um mal sem dor comparável. Não há aspirina para quem não se quer mais ser, sabia? A pessoa começa a descamar, mesmo após voltar das férias de um mês na Tailândia. - moral da história: sol demais também estraga a gente -. Vamos lá!
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A história começa com o fato de que a Menina deixou de escrever e as palavras começaram a cumular em sua nuca. (que as palavras nascem nas nucas não é segredo algum, porém, poucos sabem que ali há uma bolsinha em que elas conseguem se organizar pros chás e festinhas ocasionais. essa bolsa também é conhecida como meio do caminho. vai do cérebro ao centro do ser. quando irritadas, as palavras pipocam. dói um pouco, mas é só soltá-las, como convir, que passa. juro. mesmo assim, alguns médicos insistem em diagnosticá-las com o nome esquisito de bursite. já pensou uma doença tão engraçadinha assim?) Algumas, safadinhas, desceram um pouco e pesaram os ombros da Menina: "o braço dói, não escrevo", ela pensou. A reprodução de qualquer vírus é um nada perto do que as palavras acumuladas podem fazer com uma pessoa. Aos poucos elas brotam, e rebrotam, e transbordam... vão descendo e subindo usando as veias da gente como tobogã. Um dia, chegaram  ao coração.  São muitas e, travessas, apertaram de monte aquele músculo que ainda insiste em pulsar. Tunt-tunt-tunt-tun-tun-tu-t... Elas são muitas, o coração dói. Chora, fica magoado. Vai parando aos poucos de fazer aquele batuque  gostoso que transporta a Menina prum além. E vai ficando fraco, preguiçoso.
E a Menina cansa mais fácil. Agora não é só o braço, porque parece que algum mecanismo outro da Menina falha junto com ele. Às vezes o mecanismo solta um óleo lubrificante (um pouco salgado, aliás), que cai dos olhos dela. Ela, então, pensa no porquê de o ralo do corpo da gente ser tão pra cima... Os olhos ficam vermelhos, a gente não consegue enxergar direito depois. Quem usa óculos, numa dessas, já dançou, porque ele embaça feito carro na tempestade. Simplesmente neblina. Uma nuvem grande e grossa que, dependendo do escoamento, nos diz que é melhor deixar de ver mesmo. Se o ralo do corpo fosse no meio da coxa, a Menina pensou, ninguém teria esse problema. No meio da coxa nem tem nada além de pele, ossos, músculos e tendões. Uma frestinha ali, pequenininha, já escoaria o óleo que o nosso corpo não quer mais.
Com o coração desalentado, os olhos cerrados e aquele acúmulo de palavras no corpo (tanto que as roupas já nem fecham), a Menina passou a experimentar uma sensação nova na cabeça ("Elas já subiram", a Menina pensou). Quando as palavras sobem, escalando lentamente o restinho de coluna vertebral que temos, não tem volta: é preciso internar o sujeito e colocá-lo na ponta do lápis (ou do teclado virtual, porque os tempos são modernos). Não há outra saída. Quando demora muito, as palavras vão criando casa, reproduzindo-se infernalmente, não deixam espaço, lateja o conteúdo que havia ali, porque espremidinho, coitado, não consegue respirar. É a casa dos pensamentos. E os pensamentos sem casa vão a qual razão?
Pareceu um caso de morte generalizada. (ou paralisia). A Menina não sabia nem sequer por onde começar a faxina, porque os olhos não a deixavam ver, os pensamentos não existiam e o coração bombeava apenas o suficiente para ela estar. Sem ser.
Luz, luvas, energia e estetoscópio, teclados a postos feito bisturi.
Eis-me aqui: Menina, digitando, escrevendo, traduzindo mais do que deveria do de mim. Quantas Meninas como eu estão agora sem saber o que fazer com essa invasão de palavras que, acumuladinhas dentro de si, as impedem de viver?
Sou Mulher já, lembrei. E faz um tempo. Perdoem o vício de linguagem, o da Menina despedaçada que tenta se reerguer nas palavras. A mulher em mim, frágil, vira menina novamente. Talvez o vício seja sempre fragilizar-se.
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O que me trouxe aqui foram duas mensagens, uma de gratidão e uma de medo.
Mas o que saiu não foi nenhuma coisa, nem a outra.
O que saiu foi o que estava preso e eu nem sequer sabia que ainda havia algo em mim.
Talvez esse acúmulo todo de palavra, essa enxaqueca constante, essas lágrimas travessas e esse coração vagabundo tenham me enganado com  uma ideia prévia de que eu poderia dizer o que eu queria - e não o que eu sentia.
É que eu não sabia que eu sentia mais .
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Desculpem o engano, volto em breve. Com duas mensagens para o retorno que ora se celebra.
Estamos juntos.
Eu. As palavras. A menina e a mulher. Você.



[C.B.O]