quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Vilões

Quase um mês imersa em outro país, preciso revelar que meu maior problema nesta mudança foi a língua.
Precisava ficar longe de casa, com saudades do Marcelo, das gotinhas de deus na nossa vida, das plantinhas, da família, dos amigues... Tudo isso pesa bastante, mas a língua...

O último mês, antes de vir, foi o pior: beirou o pânico e eu ficava pensando em possibilidades de retorno caso eu não conseguisse (obviamente, não contava isso pra ninguém...).
Desde que eu cheguei,sempre tem alguém falando que eu não consigo falar bem. Que as pessoas não estão entendendo o que eu falo. Que eu falo pra dentro. Que eu falo muito formalmente.  Que eu falo muito portuñolmente. Ou seja, que eu não sei muito bem o idioma.

Claro que outras pessoas elogiam. Ontem, antes da aula, o professor disse que meu espanhol é muito bom e ele achava que não seria, porque no primeiro dia eu havia avisado para a turma toda que era preciso ter paciência comigo (Tipo Chaves, virei a mascota...). Também teve o taxista que me pegou toda nervosa no aeroporto e me trouxe conversando por 1h sobre diversos assuntos e, dentre eles, o como ele estava abismado por eu ser brasileira, afinal, pra ele eu seria, sei lá, colombiana. E teve a senhorinha, no auge dos seus 83 anos, que ficou andando comigo pelos corredores de um brechó, contando da história de algumas peças, a idade de algumas delas, a qualidade dos materiais...

Mas a outra pessoa, que está lá falando o quanto eu não sei, é a que mais pesa para mim. Talvez ela tenha estado sempre ali, mas acho que ela floresceu ano passado, depois que eu viajei para a Espanha.
Em 2015 eu já havia viajado para um país de língua espanhola e consegui me comunicar super bem com as pessoas (all inclusive = all conversation). Mas ano passado eu fiquei totalmente embasbacada com Barcelona e encantadíssima com o catalão (que desejo um dia aprender...). Fiquei me achani a espanholuda. Quando voltei pra Portugal, conversando com uma espanhola, ela, no auge da falta de paciência, me disse "Fala em português mesmo, porque seu espanhol eu não tô entendendo." Cacos ao chão.

Eu tenho alimentado essa menina.

Nesse sentido, sou eu a minha maior vilã nestes últimos meses. Sou eu que  fico achando que falo pra dentro - e às vezes falo - que fico treinando o que falar, mesmo que seja um simples "Bom dia" , por achar que não vou dar conta de estabelecer uma comunicação maior.
Mas, também, sou eu que arrumo forças sei lá de onde para seguir apesar de. (Fazer doutorado na área de educação em um país chamado Brasil-2019 é a maior prova disso).
Eu estou indo apesar de. Comprei a passagem apesar de. Fiz as malas. Desci ansiosa do avião. Fiquei muito feliz do taxista emprestar o celular para eu ligar pra dona do apartamento. Comprei comida. Fui a restaurantes. Assisti aulas. Participei das aulas espontaneamente. Fui lanchar com as meninas da turma. Fui ao cinema. Adicionei pessoas novas no meu whatsapp. Fiz impressão na lojinha da esquina. Brinquei em espanhol com o cachorro Franco. Fui ao yoga. Conversei sobre os profissionais de educação física no Brasil com a professora de pilates...

Somos esse paradoxo todo em um só corpinho que carrega uma mente tão complexa. Às vezes eu sinto que me saboto um pouquinho a cada dia. Mas eu tento outra vez: vou lá, tomo uma taça de vinho, faço a porteña. Às vezes passo despercebida. 

Sei que estou vivendo a minha possibilidade. Não caiu do céu não, infeliz - ou feliz - mente. Foram muitos anos planejando dentro de mim fazer essa viagem. Sair. Sozinha. Meses.
Carregava comigo uma frustração que vinha lá da graduação (quando eu nem sonhava, mas a vida era tão boa na Universidade): eu não tive coragem de ir pra outro país estudar alemão. Tudo bem, faltou coragem e dinheiro (não que eu tenha agora, mas...). Talvez, se eu tivesse ido, não teria medo de falar alemão hoje. Não  teria essa sensação (de autoboicote eterno) de não saber nada de alemão.
Mas eu não fui e não tem como resolver esses talvezes... Não fui antes, mas cá estou. Uma penosa batalha contra milhões de burocracias, sim. Principalmente, a burocracia que vive dentro de mim e diz que eu não darei/daria conta.
Estou dando, né?

Esse texto é mais pra conseguir refletir em voz alta o desejo que eu tenho de que essa voz baixa que fustiga dentro de mim  deva ficar mais na dela. "Acalma aí, mulher, deixa eu me virar aos poucos." E ir. Errando, sim, claro. Lembrando de todos os amigos estrangeiros que passaram por minha vida. De como eles "erravam sim, claro" e não deixavam de. Eles me inspiram.

Estou feliz, animada e tentando liquidar de vez com essa vilã que eu me sou. A moça espanhola foi a única pessoa, além de mim mesma, a me desencorajar. Ninguém mais, até hoje, pediu pra eu falar em português porque seria "mais fácil de entender". Mas eu não tenho raiva não. No fim, eu que ajudei a "moça espanhola" com tantas coisas ao longo do congresso. Inclusive, era a minha companhia que ela queria para o jantar do evento...Apesar de ser um "eu" falando em português.

Algumas coisas acontecem pra testar. Ela foi uma delas. E eu poderia ter me deixado vencer, mas outro lado de mim não gosta de perder também. Que briga, companheiros, que briga!


E sigo nas comunas de Buenos Aires.

C.B.O.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Um diário de Bordo - Parte 1



 Estou há exatos 20 dias vivendo em outro país. A sensação de estar fora, lejos de mi casa, é mais digerível agora do que o fora 30 dias atrás.
Sair do país, da zona de conforto, da possibilidade linguística de expressão plena, dos cheiros, da comida, do toque dos meus animais. Sair.

Sai. Naveguei em outras águas.

De alguma maneira, estou descobrindo que viver em outro país, com outra língua, faz da gente sujeitos mais poéticos. Tudo que explico vira poesia. Você já tentou falar para a dona da casa que a descarga do vaso sanitário disparou e você teve que fechar o registro e agora não sabe como arrumar?

Ou que as suas unhas descamam porque estão fracas?

Você já tentou contar para as amigas da universidade que o frio faz você querer ficar em casa, sem banho, sem louça, sem comer, mexendo o mínimo possível...por preguiça?

Tente explicar qualquer coisinha mais complexa e descubra o poeta que vive em você. [Isto é quase um marketing que coachings usariam, mas no caso, não é não.]

Quero escrever mais sobre essa experiência e sobre as não experiências.

Como é a experiência de descobrir que a gente às vezes pode fazer muita coisa sem falar nenhum A com outra pessoa. Ir passear, ir ao mercado, ir à ginástica por exemplo. E depois, quando refletimos um pouco, sem hipocrisia envolvida, descobrimos que fazemos isso, inclusive, em nossa língua mater.

Por que nem sempre somos tão sociáveis quanto determina a nossa espécie.

C.B.O.