quarta-feira, 26 de março de 2014

Em defesa do amor livre.



Há tempos surgiu, feito fosse novidade, a nova onda de se pensar no amor livre. Quiçá sua gênese remonte aos hippies, quiçá dos ciganos... a questão é que a tendência engloba a naturalização da prática de se amar ao outro, ou melhor, a outros, de modo desvinculado de sistematizações. Logo, se a regra diz que você só consegue amar uma pessoa por vez, normatizado, você só consegue amar um outro do sexo oposto por vez – o resto é canalhice – e a ideia do amor livre surge para demonstrar que o amor não impõe regras ou limitações. Muito menos normatização.

Deveras bacana pensar nisso, na possibilidade de um amor orgânico, sentido, que pode se multiplicar nas esquinas da vida, sem controle ou imposições do tipo: “Mas e o Fulano? Eu prometi a ele amor eterno...”. O amor “eterno” pode ser com Fulano, Beltrano ou Sicrano, simultaneamente, do mesmo modo como podemos amar nosso pai mas, também nossa mãe, nosso irmão mais velho, mas também o mais novo, e assim sucessivamente. Pois, se amamos tantas pessoas no dia-a-dia, por qual motivo escolhemos nos comprometer com apenas uma delas para todo o sempre e achar que este ato é o normal?

Não vou contra a este pensamento. Contudo, sugiro abrir espaço a outro debate. Como funciona o amor preso? É ele também o amor?

A ideia de amor, parênteses: dentro da minha concepção de jovem mulher, com minha pouca – mas acredito que não tão superficial – experiência da vida, das pessoas e das relações; na minha perspectiva, não é possível conceber seu desvinculamento total com a ideia de liberdade, pelo contrário. O amor é um sentimento que não suporta a imposição, o totalitarismo e a hegemonia de poder. Ele é construído na liberdade e apenas sobrevive se ela, paralelamente, viver. Como se a liberdade, então, fosse o próprio composto que possibilitasse uma vida do amor na terra, como é o ar aos nossos pulmões. Amor, a gente escolhe, por mais que ele cresça nas beiradas de nossos quereres.

O amor é livre desde que o poeta escolheu ir até o Inferno para encontrar Beatriz; desde que Dulcinéia era a mulher mais bela e doce para seu nobre cavalheiro, mesmo havendo tantas outras que competissem com sua figura. É a liberdade de escolher estar próximo ao amor proibido de Riobaldo para esconder o segredo de sua inocência. Amor é livre por se estender na palha como a pomba branca abocanhada pelos desejos de André. Não foi a tentativa de aprisionar que levou Romeu a tomar o veneno: foi, inclusive, seu oposto – encontrar uma liberdade mais ampla que a própria vida, que fora tomada pelas desafortunadas formalizações e normalizações sociais. O amor não é social. O amor não é um constructo social que se compre, se vende e se filie. Este amor, comercializado, cuja figura se transfigura no tempo, no contexto e nos interesses dessas distintas sociedades, na realidade, não é o amor. Aquele que ama se satisfaz em fazer o outro feliz, mesmo que isso signifique em consentir sua ausência. Amar é ser um pássaro que pode voar por todos os céus, mas escolhe pousar na árvore ao lado daquele outro pássaro amigo. Algumas vezes é necessário que os dois voem e saiam em viagens por direções distintas, inclusive para que a volta seja símbolo desta possibilidade de existência do amor dentro do que é livre. O ir e vir dentro do amor é o que o fortifica. É sempre poder escolher ir, mas decidir ficar.

O que eu defendo, portanto, é que esta história de amor livre é antiga. Passando pelas musas e pelas camponesas, o belo do amor é justamente a liberdade que temos em escolher se queremos voar ou apenas permanecer ao lado daquele que nos inspira. Inspira e Transpira. Aquele que faz transcender ao corpo e exige que nossa alma repouse ao lado do amigo, no alívio de reencontro antecipadamente desenhado, mas sem as linhas conclusas e o fechamento de uma moldura. O amor só pode sê-lo em liberdade. Que amor há nos algures de uma algema?

Nesse sentido, minha pergunta volta para a questão do clichê, numa pergunta que simboliza um retrocesso desse processo tão novo quanto andar para frente, que é a ideia de um amor livre: é possível o amor entre dois – e só dois – indivíduos? É possível que se bastem, se encontrem e se desejem deste modo livre, deste modo amável, onde a vontade de estar ao lado seja fruto de um querer livre de subordinações religiosas, sociais, regimentarias?

Não consigo conceber que a resposta seja “não, não há como”. Parece-me que ser o que está ditado é seguir uma filosofia que é sempre a mais interessante: você deve seguir o amor livre, Cristiane, ame pessoas, não gêneros, ame muito, mais amor por favor, amor em várias instâncias.

Esse plano “ditado” me parece tão superficial quanto o conceber o amor apenas entre homem e mulher, mas, normatizado em outra instância, desta feita, dentro de uma concepção de que a norma é a ausência da própria norma: todo mundo é de todo mundo.

Tal quadro de mudança na sociedade só me faz pensar nas ideias de Foucault... e, então pensar que, no sistema de disciplinarização dos sujeitos, talvez eu me coloque como peça transgressora... talvez eu esteja tentando encontrar as brechas que possibilitam uma revolução. Uma revolução sobre o amor! Sem exageros agora, não acho que o amor livre, de fato, se tornou um modelo rígido conforme se outorga, até os dias atuais, o amor heteronormativo. Não. Acho que existem forças muito resistentes dentro da cultura enraizada da heternormatividade e acredito que há muita confusão dentro da configuração deste perfil que Bauman chamaria de sociedade líquida. Nossas escolhas são de tal modo liquefeitas, estamos presentes em tantos “papéis” sociais, estabelecemos tantas identidades, identificamo-nos com tantos e diversos grupos que, quando paramos para pensar na colcha de retalhos que nos constitui, o desolamento nos deixa perdidos.

Talvez, e só talvez, a nova velha ideia de um amor livre E plural esteja em voga neste sentido de nova cultura do amor. A pluralidade em todas as nossas relações é o que nos conforta. A possibilidade de não estarmos filiados, nos guia. A questão do pertencimento já não se enquadra na sociedade pós-moderna que vivenciamos atualmente.

Nesta perspectiva, eu seria uma transcendental a partir do meu lado todo retrô. Pois, apesar da liberdade de existência, o amor para mim simboliza esta atitude de pertencimento. De ponto de encontro, de equilíbrio, de entrega. Para mim, nesta breve vida, descobri que o amor só existe se eu conto com braços amigos esperando que eu me jogue. Dai, então, eu me jogo. E há movimento mais livre do que o jogar-se? Livrar-se de todas as amarras que deixam seus pés no chão, que o inundam de materialidade e de encucamentos diários. Jogar-se, nos braços de outrem, é possibilitar que o amor seja o dono deste pertencimento, da entrega.

Já a entrega não significa dar ao outro seu destino, suas escolhas, seus caminhos. É escolher, optar, ser livre para, querer dividir, com outro, aquilo que o constitui. O que há de mais seu.

E o amor, então, é livre?

Sim, totalmente livre. Mesmo que embaixo dos lençóis do coração só haja espaço para dois.





[C.B.O.]

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