quarta-feira, 16 de abril de 2014

Sobre Ser, Estar e Pertencer.



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Quando realizamos um estudo linguístico de base semântica, compreende-se que o primeiro movimento de análise será a busca por qual o significado do uso de um termo, pensando na significância daquele termo dentro do contexto em que foi elaborado, observando sua origem e as mudanças etimológicas que sofreu durante o tempo, tentando compreender como determinado enunciado se encaixa dentro da constituição de um discurso.

De fato, procurar o significado e descobrir muito além do óbvio é o que estimula a ação da pesquisa nessa área. Sempre serão novos saberes sobre o mesmo e a surpresa nesse “reencontro” inusitado só ocorre após o aprofundamento do estudo. Enfim, nada é feito na superfície da língua.

Assim, penso nas coisas que são feitas na superfície da vida. Algumas coisas serão feitas sempre para ser superfície, como, por exemplo, fazer uma lista de compras. Após ir ao supermercado, a existência da lista perde o sentido. Outras coisas são assim também, como retirar o lixo de casa. O máximo de aprofundamento que pode haver nessa ação é a separação entre lixo orgânico e reciclado. Mas nem todo mundo recicla. A partir da divisão feita, o lixo será problema de outra pessoa, quando esse é o trabalho dela, mas para você, não haverá mais porque pensar em sua existência, basta produzir mais lixo, mesmo que nem se pense nesse movimento de produção.

Porém, outros movimentos no jogo da vida são tratados com a mesma superficialidade de escrever uma lista de supermercado, quando não deveriam sê-los. Esta mudança de finalidade, entre superficial e profundo, levou-me a pensar, então, nos verbos ser, estar e pertencer.




Relacionamentos.




Ao colocar no papel esta palavra, de repente, a escrita empaca. Fico parada pensando, de fato, o que devo dizer, como devo dizer, com que dedos escrever isto que penso, o que sinto, o que percebo no cotidiano. Não estou em bons dias para escrever sobre relacionamentos, mas, talvez mesmo por isso, motivo-me a escrevê-lo.

Nos últimos anos, tenho pensado muito no como das coisas. No modo como me relaciono, no modo como raciocino tanto frente às possibilidades, no modo como não deixo as coisas acontecerem, sempre prevendo quando vou me machucar e, desta forma, deixo de viver para não me doer.

Assim, sempre estou. Estou pronta para viver algo, mas ao mínimo sinal de desastre, pulo fora. Sou sempre a pessoa que diz sobre intensidade, sobre profundidade de relações, alguém que quer viver algo plenamente... mas não me jogo. Nunca me jogo. E sinto que os homens que cruzam meu caminho não me ajudam muito neste processo. Afinal, qual deles estaria a fim de se jogar comigo nessa brincadeira de aprofundamento? Qual, dos que passaram por mim, de fato gostariam de pertencer, a meu lado, de algo que não fosse uma lista de compras? Quem escreveria um livro, o que durasse, mesmo que tivesse fim, que seria pleno de sentido, mesmo com a limitação destes sentidos?

Enfim.

Relacionamentos de hoje que fogem tanto do uso do verbo pertencer como o era há tempos atrás. A liquidez dos movimentos faz com que este pertencimento nunca crie raízes, e não raiz para toda a vida, mas a raiz que permite, ao menos, saber que houve algo plantado, um dia, em alguma parte do terreno chamado alma.

Olho para dentro de mim e, mesmo sabendo que só estou e que teime em querer ser, mesmo não sendo, tenho a certeza de que um dia já pertenci. Já entreguei-me de modo a criar raízes, a construir uma historiazinha que não se finalizasse no medo de não-ser, no medo de não-pertencer. E criar raízes me fez aprender muito. Fez com que eu sentisse muito, tanto as dores quanto o amor que as gerou. Não, não há preço que pague a sensação de criar raiz. Mas é necessário um solo fértil, para que floresça. É necessária a coragem para furar a terra. É preciso força para se manter no plano de se jogar, penhasco abaixo, para viver um grande amor.

Hoje li um texto que falava sobre amorzinho. A autora colocava a distinção entre o amorzinho – o amor seguro –, e o amor de verdade – cheio de riscos. Ela me convenceu ao dizer que o amor de verdade é mais arriscado porque sempre temos medo de perder o que verdadeiramente nos importa. O amorzinho é um porto seguro de águas paradas. Nele não há o risco porque não há dor. Não há o real do dia a dia, que é composto, também, por dores. O amor de verdade sendo águas em uma correnteza. Nele, podemos cair do barco em determinado ponto da viagem.

Uma vez eu houvera escrito que precisava desse lugar dentro da água que não fosse a mansidão, mas que me permitisse viver. E viver inclui sentir um frio no estômago e o medo de perder... enquanto se entrega às quedas da cachoeira.

Usar o verbo pertencer é extremamente difícil e perigoso. Mais perigoso quando há essa leitura da origem do verbo, o conhecimento semântico por trás de seu uso, a responsabilidade de saber que o verbo passará por uma análise mais adiante e que, enfim, é preciso, como boa semanticista, que eu seja fiel ao significado das palavras em cada um de seus novos contextos.

Mas tem dias que dói tanto fazer essa escolha.

Vou sair, rir e esperar que passe essa responsabilidade linguística de meus ombros. E não, não voltarei ao texto para trabalhar sobre as palavras. Basta a dor de ter que parir uma só vez, é desumano exigir trabalho para uma mãe em pós-parto.









[C.B.O. – 15/04/2014.]

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