quarta-feira, 11 de junho de 2014

Outonar.


Afogo-me no escuro do dia. Ainda caem cinzas de uma brandura morna e constante que me acompanha. Estou apenas comigo mesma e já não me basto. Os muros são altos demais para minha capacidade de imaginação. Sentada no escuro, minto para as minhas preces. Apregoo uma religião de dor e cansaço que faz parte do meu cotidiano mais secreto.  Miúda menina mal-amada.

A escuridão se esgueira pela fresta da porta central e escorre lentamente até alcançar meus pés. Encostada em mim, passa a fazer parte melhor dos meus medos,dos meus suspiros. A escuridão é negra como olhos lancinantes que me penetram. A escuridão brilha como uma chama que acende minhas manhãs todos os dias. Graças à escuridão do viver que eu sigo buscando uma nova chance, uma nova estrada. Tateando meu vago futuro, vou encostada em mim e em minha escuridão.

Num desapego leve, sinto-me desprender de sua mão e me afogo em um escuro pleno, todo feito para mim. Esqueço-me então da classificação de bom ou ruim. Esqueço tantas quantas classificações que minam nos dias agora já sem memória. Dias que ficaram para frente. Afogada sem aflição, sou a menina que cai e deixa-se cair, na certeza de que uma boa aurora aguarda minha tão atrasada presença. Lanço-me ao sol que eu não conheço. O medo de cair não mais existe, porque o medo não sabe existir onde não há classificações de viver. O escuro trucida minhas angustias porque permite que eu não saiba quem eu sou enquanto caio e, magnificamente, que eu não me importe com o fato de não saber. A ciência, enfim, tornando-se mito.

O escuro é o ponto alto de um mundo curto, todo feito para amplificar os sons do de-dentro. Pelo escuro o caminho é sempre um novo e um velho, um cheio e um vazio, uma consagração do que não se sabe, enfim. Apenas através da  escuridão amortalho as alegrias ausentes há anos. Já não respiro. Sobra-me vida enquanto se torna rarefeito o ar dos meus desafetos. Não sei mais respirar os medos que por tanto tempo me acompanharam, sadios e contentes, a levar-me pela mão e dizer-me não, tantas e quantas vezes possíveis. Não consigo mais respirar embaixo dessa água escura que me cobre dos pés à cabeça. O ar... ar.... não há ar. Logo não haverá também como identificar as sensações que passo agora que começa a me faltar aquilo que eu  tanto reconhecia em mim. Estou sofrendo uma transmutação que não me permite sequer compartilhar-me contigo. Escrever no escuro é esquecer a essência.

...estou caindo. O escuro me empurrou tão forte que não sei mais o caminho de volta. Houve caminho, pergunto. Sinto-me sentindo. Pressinto que nunca havia me permitido sentir. Sentir é assim tão interno que me ruboriza. Abria-me para os sentires como uma rosa ao mundo, aos poucos, com tato, plena de restrições. A escuridão que surgiu pela porta e tocou os dedos dos meus pés não mais deixou que o sentimento se construísse assim, no insosso. Uma escuridão toda apressada de viver veio se vingar da minha lógica vida me tornando uma vaga pessoa viajante. Estou afogada no escuro. Sinto-me molestada por este sentimundo.

Sinto.

[C.B.O.]

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